sexta-feira, 18 de outubro de 2019


A reforma psiquiátrica brasileira
            Nessa postagem iremos iremos abordar aspectos históricos do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Apresentaremos uma linha do tempo com os principais eventos e personagens, identificando suas principais influências e por fim, discorreremos de maneira sintética como é composta a rede de atenção psicossocial. 
O estopim da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi a Crise da DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental). A DINSAM era um órgão responsável por formar políticas de saúde mental. Em abril de 1978, os profissionais de quatro unidades de DINSAM iniciaram uma greve, que gerou demissão de 260 profissionais e estagiários logo em seguida, as unidades em que ocorreu a greve foram: Centro Psiquiátrico Pedro II – CPPII; Hospital Pinel; Colônia Juliano Moreira – CJM; e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho (AMARANTE, 1998).
Desde 1956/57 a DINSAM não oferecia concurso público, e em 1974 iniciou contratação de bolsistas, a partir de fundos da Campanha Nacional de Saúde Mental. Os bolsistas eram profissionais ou estudantes universitários, que atuavam como médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais. As condições de trabalho eram precárias e os trabalhadores e pacientes viviam sob ameaças e violências (AMARANTE, 1998).
A crise se iniciou com três médicos bolsistas da unidade CPPII, que denunciaram as condições irregulares do hospital, o que fez com que as informações se tornassem públicas. A denúncia incentivou profissionais de outras unidades a fazerem o mesmo, e as unidades receberam apoio do Movimento de Renovação Médica (REME) e do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). O Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), também denuncia as condições de trabalho precário e falta de recursos nas unidades, e o trabalho desumanizado se torna destaque na imprensa durante oito meses (AMARANTE, 1998).
O MTSM surgiu com o objetivo de luta não institucional, para a melhoria e transformação da psiquiatria. Como início pauta-se a regularização trabalhista, pois o trabalho de bolsista é ilegal. A regularização viabilizou aumento salarial, diminuição do tempo dos turnos, melhores condições de oferecimento de serviço e trabalho mais humanizado (como por exemplo, remover o tratamento de eletrochoque) (AMARANTE, 1998).
Em outubro de 1978, houve o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que ficou conhecido como “Congresso de abertura”. Deu-se esse nome pois os movimentos de saúde mental se encontraram com setores conservadores, a fim de conquistar as mudanças necessárias. O congresso acabou tendo discussões político-ideológicas, já que não foi discutido apenas sobre as precariedades do tratamento de saúde mental, mas também fizeram críticas ao regime político. A crítica ao regime político ocorreu por conta da crise de setor, pois é um reflexo da política brasileira. O sistema de saúde desprezou a privatização de setor por diminuir a participação democrática (AMARANTE, 1998).
            O MTSM seguiu uma linha não institucional, ou seja, não estrutura institucional, que foi algo proposital a fim de resistir a institucionalização. A institucionalização representou a perda de autonomia e burocratização. Desde 1978 foi discutida a possibilidade de institucionalizar o MTSM, para que pudessem ter secretaria, sede, maior renda que geraria agilidade na resolução dos problemas. Porém os apontamentos negativos teriam grandes consequências, visto que era o primeiro movimento de saúde com participação da população. (AMARANTE, 1998).
            No início de 1980 o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) estabeleceram uma nova forma de convênio, chamado co-gestão. Esse convênio contou com a colaboração do MPAS para custear planejar e avaliar as unidades de hospitais do MS. Dessa forma o MPAS deixou de comprar serviços com caráter de clínica privada do MS, e passa a fazer parte da administração. A co-gestão marcou as políticas de saúde pública, não somente da saúde mental. Um exemplo desse fator é o Estado passar a absorver os setores críticos da saúde mental. O MTSM passar a trabalhar no espaço de instituições públicas, mesmo a co-gestão se restringindo a DINSAM. A co-gestão apresenta um novo modelo de gerenciamento de hospitais públicos, que até então tinham caráter privatizante (AMARANTE, 1998).
            A política de Previdência Social (PS) priorizava a compra de serviços hospitalares, através de convênios e credenciamentos, com a ideia de que dessa forma haveria melhor assistência médica para a população. Porém a consequência foi o aumento de internações e reinternações de doentes mentais, e aumento do Tempo Médio de Permanência Hospitalar (TMPH), o que contraria a Organização Mundial da Saúde (OMS), pois colocou assistência psiquiátrica a nível ambulatorial (AMARANTE, 1998).
            A criação da co-gestão ocorreu em um período que a PS se encontra em crise institucional. A crise não se tratava apenas de financeiro, mas também sobre ética e modelo de saúde. Os investimentos feitos não produziam benefícios satisfatórios, o que gerou críticas sociais. A privatização da assistência à saúde implantada com o PS após o Plano de Pronta Ação (PPA), tem como representante de interesses a Federação Brasileira de Hospitais (FBH). O projeto de privatização foi postulado pela FBH, que tinha intenção de utilizar grande parte dos recursos do Fundo de Apoio Social (FAS) para construção de hospitais privados (AMARANTE, 1998).
            No contexto de crise da PS, com população insatisfatória com assistência médica e sucateamento do serviço público, que surgiu a co-gestão. A primeira unidade em que a co-gestão foi implantada foi o Instituto Nacional de Câncer (INCA). Com esse método, surge a possibilidade de implementação de política de saúde pública. O MS e MPAS estabeleceram metas para a co-gestão. Como, por exemplo, o dever de o atendimento ser universal, independentemente de ser previdenciário ou não. A co-gestão funciona como agilização assistencial e financeira, porém sofre impasses com os atrasos de pagamentos de recursos previstos (AMARANTE, 1998).
            A FBH nota a possibilidade de tornar os hospitais públicos através da co-gestão, e faz críticas em que afirma ser desperdício de dinheiro público, e que os gastos da saúde pública são maiores que os da privada. Suas críticas foram denunciadas como manipuladora de dados. E se obteve a substituição de um sistema privatista para sistema público (AMARANTE, 1998).
            Com a crise financeira da PS, foi criado o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), ligado ao MPAS. Sua criação foi com intuito de ampliar a experiência com a co-gestão e outras em alguns municípios. O CONASP é formado por um plano geral de saúde previdenciário, e traz a ideia de que é responsabilidade do Estado políticas de sistema de saúde. O Plano CONASP para assistência psiquiátrica é instaurado em 1982, coincidia com diretrizes da OMS, como a descentralização executiva, regionalização, hierarquização dos serviços e fortalecimento da participação do Estado (AMARANTE, 1998).
            A partir de 1985, algumas unidades hospitalares públicas ficam sob condução de fundadores e MTSM. Eles ficaram responsáveis por elaborar novas propostas, para produzir e reproduzir novas ideias. Ordenaram da prática psiquiátrica conservadora a psiquiatria como prática social. A partir disso, ocorre o I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste, com o intuito de discutir e rever as práticas que estavam sendo exercidas na região sudeste do país (AMARANTE, 1998).
            Antes da realização do I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste ocorreram encontros estaduais, com participação da Coordenadoria Regional da Campanha Nacional de Saúde Mental (do Ministério da Saúde), secretarias estaduais e municipais de saúde, representante do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e das universidades (AMARANTE, 1998).
            Em outubro de 1986 ocorreu o I Encontro Estadual de Saúde Mental no Estado do Rio de Janeiro, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O intuito do encontro era abrir discussão para I Conferência Estadual de Saúde Mental, e o evento é debatido na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília. No encontro ocorrem discussões importantes como por exemplo a relação de participação de pacientes e ex pacientes. Em março de 1987 ocorre a I Conferência Estadual de Saúde Mental do Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A conferência é realizada sem o consentimento do MS. A principal discussão era “política nacional de saúde mental na reforma sanitária” (AMARANTE, 1998).
            Em abril de 1987 ocorreu o II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste. Os temas que foram propostos ao encontro foram: “saúde mental na rede pública: situação atual e avaliação das propostas e desdobramentos do I Encontro de Coordenadores” e “a saúde mental na reforma sanitária”. Ao fim se destaca as conquistas realizadas em consequência ao I Encontro, como a não expansão dos manicômios e a introdução das Comissões Interinstitucionais de Saúde Mental (CISM) (AMARANTE, 1998).
            Em junho de 1987 ocorre a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que contou com a presença de 176 delegados. As recomendações da conferência foram: trabalhadores da área de saúde mental devem trabalhar em conjunto com a sociedade civil, necessidade de participação da população e priorizar investimentos em serviços extra-hospitalares (AMARANTE, 1998).
Como vimos nos posts anteriores, os modelos ditos ‘terapêuticos’ pautava-se no sistema biomético, visando a hospitalização e a segregação. Nestes, o sujeito portador de um distúrbio não era considerado como pessoa dotada de razão, vontade e humana. Eram indivíduos a serem vigiados, controlados e disciplinados. Um exemplo desse tratamento, é a história da uma mulher que morreu aprisionada em um hospício por falta de cuidados. Sua existência foi esquecida no local, ou seja, morreu de fome e frio. Somente depois de muito tempo que seu corpo foi encontrado, já petrificado e em posição fetal. Tais acontecimentos evidenciaram a necessidade de superar esse modelo (AMARANTE, 2007).

Estratégias de atuação na Saúde Mental e o Atendimento Psicossocial
Nas semanas anteriores, trabalhamos diversas tentativas e em diversos países de superar o modelo psiquiátrico arcaico. Em alguns, apresentava-se a proposta de reformulação dos serviços ofertados, tentativas de humanizar o espaço hospitalar e até, utilizá-los somente em casos excepcionais. Entretanto, as mudanças foram superficiais e não fugia-se de forma completa das atividades e concepções elaboradas historicamente. Assim, de acordo com Amarante (2007), ultrapassar essas refutações, é necessário pensar o campo de saúde mental e atenção psicossocial como um processo contínuo, nocivo e aberto à mudança, ou melhor, como um processo elaborado socialmente.
A Saúde Mental e Atenção Psicossocial, como uma nova perspectiva elaborou quatro dimensões relevantes na organização desta, a dimensão teórico-conceitual, o técnico-assistencial, a jurídico-política, e o sociocultural.  No teórico-conceitual é tratado da fundamentação do saber psiquiátrico. Diferentemente do que foi elaborado na psiquiatria arcaica que compreendia a ciência como um saber único e universal, atualmente considera-se importante considerar as influências da ordem ideológica, política e ética, para que assim, compreendeu-se a realidade como um construto a ser contextualizado e não como algo natural. Nesta dimensão trabalhou-se na desconstrução e reconstrução de novos conceitos, olhando para o sujeito em foco e sua realidade, diferentemente de colocar a doença, como se ela fosse expressa universalmente igual a todos  (AMARANTE, 2007).
Na dimensão técnico-assistencial é considerado a subjetividade do indivíduo, como relatado no parágrafo anterior. Assim, há a construção de novos serviços e espaços de sociabilidade, olhando para os problemas concretos do sujeito em sua atividade cotidiana, como no ambiente de trabalho, no núcleo familiar e outros. Tal, possibilita a ampliação da integralidade, fugindo de fundar mais espaços de repressão e exclusão  (AMARANTE, 2007).
A terceira dimensão,  sendo ela a jurídico-política, refere-se a busca do reconhecimento do sujeito em sofrimento mental como dotado de direitos civis, políticos e sociais. Nesta, há uma revisão do código penal, civil, demais leis e normas sociais para adequar, assegurar e possibilitar o direito à cidadania, trabalho e ingresso social. A promulgação da Lei 10.2016 em 6 de abril de 2001 foi um importante marco na luta para a proteção, garantia de direitos e no redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental. Contudo, a aprovação de leis não garante a efetivação de fato desta, é preciso compreender a cidadania como um processo social, mudar os estigmas e as demais atitudes que orientam as relações sociais (AMARANTE, 2007).
Na dimensão sociocultural, há o entendimento que a sociedade constrói ao longo da história formas de interpretações do mundo, indivíduos e coisas, ou melhor, constroem representações coletivas que dão sentido e orientam seus comportamentos. Como exemplo, se a sociedade acredita que as pessoas com sofrimento mental são perigosas e irracionais, irão construir meios de segregá-las, criarão leis punitivas e iremos construir uma representação social e sentidos sociais de medo. Em contrapartida, se refutamos essa concepção e adotarmos a descrita neste post, podemos desenvolver outra forma da sociedade se relacionar com o tema (AMARANTE, 2007).
Um exemplo de ação relacionada com a dimensão sociocultural é o dia 18 de maio, que foi instaurado como O Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Nele, é realizado atividades culturais, políticas, acadêmicas, esportivas e outras que promovem a discussão e reflexão com a sociedade desses novos aspectos da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial. Para além, há também serviços de atenção psicossocial, sendo um modelo que pretende promover o conhecimento e exercício do direito da pessoa, pautado na sua vivência em sociedade (AMARANTE, 2007).
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS), propõe um modelo de atenção na saúde mental baseado na comunidade, garantindo  a autonomia pelos serviços, pela comunidade e pela cidade. Na atuação, há um foco na atenção à crise. Esta é compreendida como o produto de diversos fatores para além do indivíduo. Considera-se as influências da família, amigos, conhecidos e envolve uma situação de precariedade de recursos que dificultam ou impossibilitam o tratamento dos sujeitos em sua residência. Portanto, faz-se necessários a existência de serviços de atenção psicossocial que realizam o acolhimento e expressão dos sentimentos que os afligem (AMARANTE, 2007).
            Durante a oferta de serviço, é necessário um bom vínculo entre profissional e usuário, sendo preparado academicamente e disposto a ajudá-los, orientá-los e fazer os encaminhamentos pertinentes. Pretende-se lidar com toda uma rede de relações entre os sujeitos e não com a doença descontextualizada. Deve existir uma equipe multiprofissional nos cuidados direcionados aos sujeitos, a fim de compreendendo em sua totalidade. Para além dos profissionais da saúde, existe também a contribuição de outros profissionais, como músicos, artistas artesãos e outros, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades. Estas atividades culturais são desenvolvidas na base territorial, promovendo a sociabilidade (AMARANTE, 2007).
No Brasil, pautados nessa forma descrita de lidar com o processo saúde doença, existem diversos campos e espaços. Para atender a demanda de saúde mental existem os hospitais-dia, oficinas terapêuticas e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Já no campo da saúde em geral, há a Estratégia Saúde da Família, centros de saúde, rede básica, ambulatórios, hospitais gerais, especializados e outros. Os serviços de políticas públicas existe a previdência social, ministério público, delegacias, instituições para idosos, para crianças, igrejas, transporte e vários outros (AMARANTE, 2007).
Um importante atuante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial é o pesquisador Paulo Amarante. Considerado pioneiro nessa área, até hoje realiza palestras e outros meios de luta na superação do modelo biomédico. Deixamos assim, uma entrevista realizada com ele, na qual relata sua entrada na psiquiatria, suas primeiras atividades e mais sobre as influências sociais na saúde mental. 
            Vamos deixar também como referência a abertura da 8° Conferência Nacional de Saúde, dirigida pelo professor sanitarista Sergio Arouca, que foi um dos principais teóricos e líderes do chamado "movimento sanitarista", que mudou o tratamento da saúde pública no Brasil.
            Colocamos um link a seguir da Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”.

REFERÊNCIAS
AMARANTE, Paulo. Estratégias e Dimensões do Campo da Saúde Mental e Atenção Psicossocial  . In: _____. Saúde mental e atenção psicossocial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2007. p. 61 - 80.
AMARANTE, P. coord. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil [online]. 2nd ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. Criança, mulher e saúde collection. ISBN 978-85-7541-335-7. Available from SciELO Books .