A reforma psiquiátrica brasileira
Nessa postagem iremos
iremos abordar aspectos históricos do movimento
da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Apresentaremos uma linha do tempo com os
principais eventos e personagens, identificando suas principais influências e
por fim, discorreremos de maneira sintética como é composta a rede de atenção
psicossocial.
O estopim da Reforma Psiquiátrica
Brasileira foi a Crise da DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental). A DINSAM era um
órgão responsável por formar políticas de saúde mental. Em abril de 1978, os
profissionais de quatro unidades de DINSAM iniciaram uma greve, que gerou
demissão de 260 profissionais e estagiários logo em seguida, as unidades em que
ocorreu a greve foram: Centro Psiquiátrico Pedro II – CPPII; Hospital Pinel;
Colônia Juliano Moreira – CJM; e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho
(AMARANTE, 1998).
Desde 1956/57 a DINSAM não oferecia
concurso público, e em 1974 iniciou contratação de bolsistas, a partir de
fundos da Campanha Nacional de Saúde Mental. Os bolsistas eram profissionais ou
estudantes universitários, que atuavam como médicos, psicólogos, enfermeiros e
assistentes sociais. As condições de trabalho eram precárias e os trabalhadores
e pacientes viviam sob ameaças e violências (AMARANTE, 1998).
A crise se iniciou com três médicos
bolsistas da unidade CPPII, que denunciaram as condições irregulares do
hospital, o que fez com que as informações se tornassem públicas. A denúncia
incentivou profissionais de outras unidades a fazerem o mesmo, e as unidades
receberam apoio do Movimento de Renovação Médica (REME) e do Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde (CEBES). O Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental
(MTSM), também denuncia as condições de trabalho precário e falta de recursos
nas unidades, e o trabalho desumanizado se torna destaque na imprensa durante
oito meses (AMARANTE, 1998).
O MTSM surgiu com o objetivo de luta
não institucional, para a melhoria e transformação da psiquiatria. Como início
pauta-se a regularização trabalhista, pois o trabalho de bolsista é ilegal. A
regularização viabilizou aumento salarial, diminuição do tempo dos turnos,
melhores condições de oferecimento de serviço e trabalho mais humanizado (como
por exemplo, remover o tratamento de eletrochoque) (AMARANTE, 1998).
Em outubro de 1978, houve o V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que ficou conhecido como “Congresso de
abertura”. Deu-se esse nome pois os movimentos de saúde mental se encontraram
com setores conservadores, a fim de conquistar as mudanças necessárias. O
congresso acabou tendo discussões político-ideológicas, já que não foi
discutido apenas sobre as precariedades do tratamento de saúde mental, mas
também fizeram críticas ao regime político. A crítica ao regime político
ocorreu por conta da crise de setor, pois é um reflexo da política brasileira.
O sistema de saúde desprezou a privatização de setor por diminuir a
participação democrática (AMARANTE, 1998).
O MTSM seguiu uma linha não institucional, ou seja, não estrutura
institucional, que foi algo proposital a fim de resistir a institucionalização.
A institucionalização representou a perda de autonomia e burocratização. Desde
1978 foi discutida a possibilidade de institucionalizar o MTSM, para que
pudessem ter secretaria, sede, maior renda que geraria agilidade na resolução
dos problemas. Porém os apontamentos negativos teriam grandes consequências,
visto que era o primeiro movimento de saúde com participação da população.
(AMARANTE, 1998).
No início de 1980 o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS) estabeleceram uma nova forma de
convênio, chamado co-gestão. Esse convênio contou com a colaboração do MPAS
para custear planejar e avaliar as unidades de hospitais do MS. Dessa forma o
MPAS deixou de comprar serviços com caráter de clínica privada do MS, e passa a
fazer parte da administração. A co-gestão marcou as políticas de saúde pública,
não somente da saúde mental. Um exemplo desse fator é o Estado passar a
absorver os setores críticos da saúde mental. O MTSM passar a trabalhar no
espaço de instituições públicas, mesmo a co-gestão se restringindo a DINSAM. A
co-gestão apresenta um novo modelo de gerenciamento de hospitais públicos, que
até então tinham caráter privatizante (AMARANTE, 1998).
A política de Previdência Social (PS) priorizava a compra de
serviços hospitalares, através de convênios e credenciamentos, com a ideia de
que dessa forma haveria melhor assistência médica para a população. Porém a
consequência foi o aumento de internações e reinternações de doentes mentais, e
aumento do Tempo Médio de Permanência Hospitalar (TMPH), o que contraria a
Organização Mundial da Saúde (OMS), pois colocou assistência psiquiátrica a
nível ambulatorial (AMARANTE, 1998).
A criação da co-gestão ocorreu em um período que a PS se encontra
em crise institucional. A crise não se tratava apenas de financeiro, mas também
sobre ética e modelo de saúde. Os investimentos feitos não produziam benefícios
satisfatórios, o que gerou críticas sociais. A privatização da assistência à
saúde implantada com o PS após o Plano de Pronta Ação (PPA), tem como
representante de interesses a Federação Brasileira de Hospitais (FBH). O
projeto de privatização foi postulado pela FBH, que tinha intenção de utilizar
grande parte dos recursos do Fundo de Apoio Social (FAS) para construção de hospitais
privados (AMARANTE, 1998).
No contexto de crise da PS, com população insatisfatória com
assistência médica e sucateamento do serviço público, que surgiu a co-gestão. A
primeira unidade em que a co-gestão foi implantada foi o Instituto Nacional de
Câncer (INCA). Com esse método, surge a possibilidade de implementação de
política de saúde pública. O MS e MPAS estabeleceram metas para a co-gestão.
Como, por exemplo, o dever de o atendimento ser universal, independentemente de
ser previdenciário ou não. A co-gestão funciona como agilização assistencial e
financeira, porém sofre impasses com os atrasos de pagamentos de recursos
previstos (AMARANTE, 1998).
A FBH nota a possibilidade de tornar os hospitais públicos
através da co-gestão, e faz críticas em que afirma ser desperdício de dinheiro
público, e que os gastos da saúde pública são maiores que os da privada. Suas
críticas foram denunciadas como manipuladora de dados. E se obteve a
substituição de um sistema privatista para sistema público (AMARANTE, 1998).
Com a crise financeira da PS, foi criado o Conselho Consultivo de
Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), ligado ao MPAS. Sua criação foi
com intuito de ampliar a experiência com a co-gestão e outras em alguns municípios.
O CONASP é formado por um plano geral de saúde previdenciário, e traz a ideia
de que é responsabilidade do Estado políticas de sistema de saúde. O Plano
CONASP para assistência psiquiátrica é instaurado em 1982, coincidia com
diretrizes da OMS, como a descentralização executiva, regionalização,
hierarquização dos serviços e fortalecimento da participação do Estado
(AMARANTE, 1998).
A partir de 1985, algumas unidades hospitalares públicas ficam
sob condução de fundadores e MTSM. Eles ficaram responsáveis por elaborar novas
propostas, para produzir e reproduzir novas ideias. Ordenaram da prática
psiquiátrica conservadora a psiquiatria como prática social. A partir disso,
ocorre o I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste, com o
intuito de discutir e rever as práticas que estavam sendo exercidas na região
sudeste do país (AMARANTE, 1998).
Antes da realização do I Encontro de Coordenadores de Saúde
Mental da Região Sudeste ocorreram encontros estaduais, com participação da
Coordenadoria Regional da Campanha Nacional de Saúde Mental (do Ministério da
Saúde), secretarias estaduais e municipais de saúde, representante do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e das
universidades (AMARANTE, 1998).
Em outubro de 1986 ocorreu o I Encontro Estadual de Saúde Mental
no Estado do Rio de Janeiro, no Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. O intuito do encontro era abrir discussão para I
Conferência Estadual de Saúde Mental, e o evento é debatido na 8ª Conferência
Nacional de Saúde, realizada em Brasília. No encontro ocorrem discussões
importantes como por exemplo a relação de participação de pacientes e ex
pacientes. Em março de 1987 ocorre a I Conferência Estadual de Saúde Mental do
Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A
conferência é realizada sem o consentimento do MS. A principal discussão era
“política nacional de saúde mental na reforma sanitária” (AMARANTE, 1998).
Em abril de 1987 ocorreu o II Encontro de Coordenadores de Saúde
Mental da Região Sudeste. Os temas que foram propostos ao encontro foram:
“saúde mental na rede pública: situação atual e avaliação das propostas e
desdobramentos do I Encontro de Coordenadores” e “a saúde mental na reforma
sanitária”. Ao fim se destaca as conquistas realizadas em consequência ao I
Encontro, como a não expansão dos manicômios e a introdução das Comissões
Interinstitucionais de Saúde Mental (CISM) (AMARANTE, 1998).
Em junho de 1987 ocorre a I Conferência Nacional de Saúde
Mental, que contou com a presença de 176 delegados. As recomendações da
conferência foram: trabalhadores da área de saúde mental devem trabalhar em
conjunto com a sociedade civil, necessidade de participação da população e
priorizar investimentos em serviços extra-hospitalares (AMARANTE, 1998).
Como vimos nos posts anteriores, os
modelos ditos ‘terapêuticos’ pautava-se no sistema biomético, visando a
hospitalização e a segregação. Nestes, o sujeito portador de um distúrbio não
era considerado como pessoa dotada de razão, vontade e humana. Eram indivíduos
a serem vigiados, controlados e disciplinados. Um exemplo desse tratamento, é a
história da uma mulher que morreu aprisionada em um hospício por falta de cuidados.
Sua existência foi esquecida no local, ou seja, morreu de fome e frio. Somente
depois de muito tempo que seu corpo foi encontrado, já petrificado e em posição
fetal. Tais acontecimentos evidenciaram a necessidade de superar esse modelo
(AMARANTE, 2007).
Estratégias de atuação na Saúde
Mental e o Atendimento Psicossocial
Nas semanas anteriores, trabalhamos
diversas tentativas e em diversos países de superar o modelo psiquiátrico
arcaico. Em alguns, apresentava-se a proposta de reformulação dos serviços
ofertados, tentativas de humanizar o espaço hospitalar e até, utilizá-los
somente em casos excepcionais. Entretanto, as mudanças foram superficiais e não
fugia-se de forma completa das atividades e concepções elaboradas
historicamente. Assim, de acordo com Amarante (2007), ultrapassar essas
refutações, é necessário pensar o campo de saúde mental e atenção psicossocial
como um processo contínuo, nocivo e aberto à mudança, ou melhor, como um
processo elaborado socialmente.
A Saúde Mental e Atenção
Psicossocial, como uma nova perspectiva elaborou quatro dimensões relevantes na
organização desta, a dimensão teórico-conceitual, o técnico-assistencial, a
jurídico-política, e o sociocultural. No teórico-conceitual é tratado da
fundamentação do saber psiquiátrico. Diferentemente do que foi elaborado na
psiquiatria arcaica que compreendia a ciência como um saber único e universal,
atualmente considera-se importante considerar as influências da ordem
ideológica, política e ética, para que assim, compreendeu-se a realidade como
um construto a ser contextualizado e não como algo natural. Nesta dimensão
trabalhou-se na desconstrução e reconstrução de novos conceitos, olhando para o
sujeito em foco e sua realidade, diferentemente de colocar a doença, como se
ela fosse expressa universalmente igual a todos (AMARANTE, 2007).
Na dimensão técnico-assistencial é
considerado a subjetividade do indivíduo, como relatado no parágrafo anterior.
Assim, há a construção de novos serviços e espaços de sociabilidade, olhando
para os problemas concretos do sujeito em sua atividade cotidiana, como no
ambiente de trabalho, no núcleo familiar e outros. Tal, possibilita a ampliação
da integralidade, fugindo de fundar mais espaços de repressão e exclusão
(AMARANTE, 2007).
A terceira dimensão, sendo ela
a jurídico-política, refere-se a busca do reconhecimento do sujeito em
sofrimento mental como dotado de direitos civis, políticos e sociais. Nesta, há
uma revisão do código penal, civil, demais leis e normas sociais para adequar,
assegurar e possibilitar o direito à cidadania, trabalho e ingresso social. A
promulgação da Lei 10.2016 em 6 de abril de 2001 foi um importante marco na
luta para a proteção, garantia de direitos e no redirecionamento do modelo
assistencial em saúde mental. Contudo, a aprovação de leis não garante a
efetivação de fato desta, é preciso compreender a cidadania como um processo
social, mudar os estigmas e as demais atitudes que orientam as relações sociais
(AMARANTE, 2007).
Na dimensão sociocultural, há o
entendimento que a sociedade constrói ao longo da história formas de
interpretações do mundo, indivíduos e coisas, ou melhor, constroem
representações coletivas que dão sentido e orientam seus comportamentos. Como
exemplo, se a sociedade acredita que as pessoas com sofrimento mental são
perigosas e irracionais, irão construir meios de segregá-las, criarão leis
punitivas e iremos construir uma representação social e sentidos sociais de
medo. Em contrapartida, se refutamos essa concepção e adotarmos a descrita
neste post, podemos desenvolver outra forma da sociedade se relacionar com o
tema (AMARANTE, 2007).
Um exemplo de ação relacionada com a
dimensão sociocultural é o dia 18 de maio, que foi instaurado como O Dia
Nacional da Luta Antimanicomial. Nele, é realizado atividades culturais,
políticas, acadêmicas, esportivas e outras que promovem a discussão e reflexão
com a sociedade desses novos aspectos da Saúde Mental e da Atenção
Psicossocial. Para além, há também serviços de atenção psicossocial, sendo um
modelo que pretende promover o conhecimento e exercício do direito da pessoa,
pautado na sua vivência em sociedade (AMARANTE, 2007).
A Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS), propõe um modelo de atenção
na saúde mental baseado na comunidade, garantindo a autonomia pelos
serviços, pela comunidade e pela cidade. Na atuação, há um foco na atenção à
crise. Esta é compreendida como o produto de diversos fatores para além do
indivíduo. Considera-se as influências da família, amigos, conhecidos e envolve
uma situação de precariedade de recursos que dificultam ou impossibilitam o
tratamento dos sujeitos em sua residência. Portanto, faz-se necessários a
existência de serviços de atenção psicossocial que realizam o acolhimento e
expressão dos sentimentos que os afligem (AMARANTE, 2007).
Durante a oferta de serviço, é necessário um bom vínculo entre
profissional e usuário, sendo preparado academicamente e disposto a ajudá-los,
orientá-los e fazer os encaminhamentos pertinentes. Pretende-se lidar com toda
uma rede de relações entre os sujeitos e não com a doença descontextualizada.
Deve existir uma equipe multiprofissional nos cuidados direcionados aos
sujeitos, a fim de compreendendo em sua totalidade. Para além dos profissionais
da saúde, existe também a contribuição de outros profissionais, como músicos,
artistas artesãos e outros, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades.
Estas atividades culturais são desenvolvidas na base territorial, promovendo a
sociabilidade (AMARANTE, 2007).
No Brasil, pautados nessa forma descrita de lidar com o processo saúde
doença, existem diversos campos e espaços. Para atender a demanda de saúde
mental existem os hospitais-dia, oficinas terapêuticas e os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS). Já no campo da saúde em geral, há a Estratégia Saúde da
Família, centros de saúde, rede básica, ambulatórios, hospitais gerais,
especializados e outros. Os serviços de políticas públicas existe a previdência
social, ministério público, delegacias, instituições para idosos, para crianças,
igrejas, transporte e vários outros (AMARANTE, 2007).
Um importante atuante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial é o
pesquisador Paulo Amarante. Considerado pioneiro nessa área, até hoje realiza
palestras e outros meios de luta na superação do modelo biomédico. Deixamos
assim, uma entrevista realizada com ele, na qual relata sua entrada na
psiquiatria, suas primeiras atividades e mais sobre as influências sociais na
saúde mental.
Vamos deixar também como referência
a abertura da 8° Conferência Nacional de Saúde, dirigida pelo professor
sanitarista Sergio Arouca, que foi um dos principais teóricos e líderes do
chamado "movimento sanitarista", que mudou o tratamento da saúde
pública no Brasil.
Colocamos um link a seguir da Lei Nº
8.080, de 19 de setembro de 1990, “dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências”.
REFERÊNCIAS
AMARANTE, Paulo.
Estratégias e Dimensões do Campo da Saúde Mental e Atenção Psicossocial .
In: _____. Saúde mental e atenção psicossocial. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz. 2007. p. 61 - 80.
AMARANTE, P. coord.
Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil [online]. 2nd
ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. Criança, mulher e saúde collection.
ISBN 978-85-7541-335-7. Available from SciELO Books
.